segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Na ação, o sentido se perde. O sentido se mantém mais facilmente nos sonhos.

Cheguei a Florença no domingo, por volta do meio-dia, e fui direto ao apartamento de Nicoletta.

Senti, mais do nunca, aquela sensação de que eu tinha voltado para casa e que tudo era simples, até meu desejo por ela.
...

“Quero te mostrar uma coisa. Será que dá para entrar e chegar até a Sacrestia Vecchia?”
...

Fomos direto para a Sacrestia Vecchia, que é um pequeno milagre de Brunelleschi. À primeira vista, o lugar não parece grande coisa, é despojado, simples, mas aos poucos ele vai transmitindo uma sensação de confiança no mundo, na possibilidade de ele obedecer a um sonho da razão em que funcionalidade e elegância coincidiram sem esforço, com parcimônia de traços e elementos. Não é só isso: é o sonho de um mundo que não precisaria de explicação alguma, que se justificaria por si só, por sua beleza. A luz descia e inundava cada canto da sacristia, uniformemente.

“E então?”, perguntou Nicoletta quando paramos no meio da Sacrestia Vecchia.

“Então” eu disse, “é isso: estar com você é como viver aqui. E sem as esculturas de Donatello, que Brunelleschi detestava. Quando estou com você tudo parece claro e natural, simples e bonito. Agora, de fato eu não sou assim. Venha, talvez ainda dê tempo.”

Abri caminho, um caminho que conhecia bem, até a Ceppella dei Principi.

A Capella dei Principi ... é o oposto da Sacrestia Vecchia: imponente, barroca, opulenta, pesada, cheia de volutas desnecessárias, com uma multiplicação absurda de cores diferentes; os desenhos no chão de mármore evocam a loja de um mercador de tapetes persas enlouquecido. A luz se perde em contos mais escuros ou em outros francamente sombrios.

“Na verdade é assim que eu sou”, eu disse, “parecido cm este horror barroco, complicado sem necessidade, pomposo, falsamente elegante e, sobretudo, atormentado. É um tipo de arquitetura que evoca mais Roma que Florença – a Roma papal barroca, a Roma da Contra-Reforma, feita de desejos inconfessáveis, repetido compulsivamente, culpados e por isso mesmo praticados até a náusea. É a Roma dos bastidores de um poder que goza sem limites e com um falso pudor – que é a pior maneira de gozar.”

Eu não sabia se estava conseguindo me explicar. Insisti: “Se a Capella dei Principi é a Roma barroca, a Sacrestia Vecchia, a de Brunelleschi, é Florença. A Florença da Renascença. Não é nenhum paraíso; o pessoal também se odeia e se mata, se for preciso, mas vive na luz.”
Fiquei um momento em silencio. Depois acrescentei: “Queria lhe dizer que eu venho de Roma e que você é a minha Florença.”

Nicoletta pegou minha mão olhando para a cúpula da Cappella dei Principi e disse, me comovendo às lágrimas: “Estou com você, em Florença ou em Roma.”

Eu tinha que beijá-la, por sorte não havia mais ninguém na Cappella dei Principi.

**Trecho de o conto do amor de Contardo Calligaris**


Sacrestia Vecchia (Florença)

Capella dei Principi (Florença)

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