quarta-feira, 14 de maio de 2008

A incrível arte da vigília

Talvez pela minha incurável insônia, eu ainda não tenha perdido, no meio desta conturbada vida moderna, o prazer de ver o outro dormindo. De vigiar, de prestar atenção para que nada atrapalhe aquele momento sublime... por vezes me perdendo até do que eu estava fazendo (normalmente vendo um filme), principalmente quando balbucia coisas inteligíveis.
E, já na cama, quando vira, ainda dormindo, procurando minha mão, me abraçando...
Isso sim, não tem preço, caros leitores (se é que existe algum... rs)




CÃO DE GUARDA (RELOADED, A PEDIDOS)
Xico Sá


“Amar, além de muitas outras coisas, quer dizer deleitar-se na contemplação e na observação da pessoa amada”, sopra o velho escritor Alberto Moravia, sempre aqui na cabeceira.

Uma das melhores coisas da vida é observar a pessoa amada que dorme,entregue, para além dos pesadelos diários.

Como bem disse Antônio Maria, o grande cronista que aparece com ciúmes até da própria sombra na vida e no livro da Danuza , um homem e uma mulher jamais deveriam dormir ao mesmo tempo, embora invariavelmente juntos, para que não perdessem, um no outro, o primeiro carinho de que desperta.

Experimente você também, sensíiiiiiiivel leitora, vê o seu homem quando dorme. Há uma beleza nessa vigília que os tempos corridos de hoje não percebem.

Amar é... vê-lo dormindo como um Garfield lesado e alasanhado.

Cada mexidinha, cada gesto. O que sonha nesse exato momento? Tomara que seja comigo, você pensa, pois o amor também é egoísmo.

Gaste pelo menos meia hora por semana nesse privilegiado observatório.

Psiuuuuu!
Ela dorme.

Mãozinha no ar, como se apanhasse pássaros, que coisa mais linda. Uns 23 minutos assim, mirei no rádio-relógio. A mão desce ao colchão, quase dormente, formigamentos. Coça o nariz. Põe a mãozinha direita entre as coxas. Agora vira de lado, como os antigos LPs quando gastavam as seis músicas do A. E me abraça como nunca fosse partir, corpos viciados, almas em busca de um acerto.

Dorme, meu anjo.
Ela obedece.

Vigio o sono dela como um soldado zapatista na selva escura.
Como um cão zela o sangue do dono.
Como se fosse um homem-exército e pronto.

Amar, no início era o verbo intransitivo da alemã professora de amor de Mario de Andrade. O idílio tem sobrevida, não como gênero, mas como vício, vício de amar. Amar de muito.
A mão desce agora sobre o meu peito, como se medisse meus batimentos.

A mão direita volta para a arte de apanhar pássaros, que beleza, que diabos!

O ideal é que você, amiga leitora e sensivi, durma do lado esquerdo da cama, o do coração, sempre.

Mãozinha no ar catando pássaros. Até se acalmar de vez.
Calmaria danada de horas, sem coreografias ou narrativas. Sonha, sonha, sonha, minha menina.

Como é lindo a vigília ao sono dela.

Coça o nariz. Sussurra umas onomatopeiazinhas lindas de sonhos de besouros.
Ela arruma os cabelos como algas, entorpeço num mergulho.

Observar o sono do(a) amado(a) é a melhor maneira de mapear a sua beleza.
É a melhor maneira de conhecer o homem ou a mulher com quem dormimos.

E como são lindas aquelas marquinhas deixadas pelos lençóis no corpo dela. Um mapa de delírios! Melhor é lê-las como quem adivinha os sonhos e o futuro no fundo da xícara árabe ou nas cartas.

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