quinta-feira, 17 de abril de 2008

Lisboa Connection

1º de abril

Parece mentira, sobretudo no dia dedicado a elas. Não é. Mudo de casa e conheço a vizinha em circunstâncias atípicas: ela, vestida; eu, nem por isso. Como foi que o encontro aconteceu? Durante séculos, pais e avós ensinavam os filhos e os netos a bater antes de entrar. A minha vizinha, que provavelmente já tem netos, não teve pais nem avós.

Na noite anterior, depois de jantar generoso, entrei em casa e encostei a porta, na crença sincera de que a trancara. Não tranquei. Encostei. A vizinha, ao ver a porta entreaberta na manhã seguinte, resolveu investigar se havia ladrões no prédio. Não havia. Como a casa é um pequeno estúdio, com cama ao centro, a prestável senhora encontrou apenas o presente cronista, tão inocente como veio ao mundo, dormindo um sono pueril.

Houve um ligeiro grito (dela). Houve um acordar violento (meu). Erguendo o tronco, encontrei a benemérita literalmente aos pés do leito, ruborizada como um bife tártaro, com os olhos postos onde Adão e Eva não encontravam pecado (antes da maçã). E, sem os desviar, ainda perguntou se a porta era para fechar. Esmerado como sou, agradeci a gentileza e a porta fechou-se. Do outro lado, risos insanos e a frase abismada "Tu não vais acreditar no que eu acabei de ver" (provavelmente, falando ao celular) deram o golpe final no meu sono moribundo.

O bairro promete.

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4 de abril

Os meus amigos não dispensam o psicanalista. Uma vez, duas vezes por semana. Um deles é incapaz de tomar uma decisão, qualquer que ela seja, sem telefonar primeiro ao confessor. Como explicar tudo isto?

O poeta Philip Larkin resumiu o problema em "This be the verse", a composição poética que lhe custou o título de "Sir" pelo uso de linguagem chula nos primeiros versos. Injusto, Majestade. Com "They fuck you up, your mom and dad", Larkin não se limitava a explicar a forma como os pais tendem a arruinar a vida dos filhos; Larkin vai mais longe e explica que a culpa não é inteiramente dos pais: eles limitaram-se a ter a vida arruinada pelos avós, e os avós pelos bisavós, e por aí fora. Mas arruinada com quê?

Com as expectativas envenenadas que os pais tendem a colocar sobre a descendência, sobretudo na vulgar sociedade meritocrática em que vivemos. Olho para os meus amigos, alguns deles pais. E não deixa de ter o seu encanto a forma como eles usam os filhos para compensar frustrações privadas. As crianças não são crianças, destinadas a crescer, aprender, acertar, falhar e, sobretudo, procurar. São antidepressivos que servem para aliviar os fracassos dos progenitores: se os pais não ganharam o Nobel, eles esperam ansiosamente que os filhos cumpram a missão. O bom nome da família depende disso.

E o cenário tende a piorar, segundo Adam Philipps, um conhecido psicanalista britânico que, além de cultura literária suprema, tem a honestidade de não apresentar a "felicidade" como artigo de marketing. Em texto para a revista "Prospect", Phillips critica a ambição do governo inglês (e, a prazo, dos vários governos europeus) em ensinar "Felicidade" como disciplina escolar. Para Phillips, ainda que a "Felicidade" fosse matéria ensinável (obviamente, não é), aulas de "Felicidade" acabariam por gerar resultados perversos, sobretudo entre os alunos mais "relapsos". A ideia totalitária de que só vidas felizes valem a pena ser vividas transforma os "infelizes" numa nova classe de leprosos morais.

Para Philipps, uma vida educada não serve para nos tornar mais felizes. Serve apenas para que as pessoas possam suportar a infelicidade e receber o seu oposto quando ele acontece. Mas quem está disposto a este programa mais modesto? Não os meus amigos. Eles correm para o psicanalista ao mesmo tempo que preparam os filhos para os psicanalistas de amanhã.
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11 de abril

Herdei vários traços do meu avô. Os olhos, a pele clara, o cabelo ondulado. Mas nenhum me orgulha tanto como a tendência permanente para falar sozinho. Ainda não atingi o patamar dele, é certo: o meu avô tinha várias conversas, a várias vozes e com vários personagens, normalmente em salas de tribunal imaginárias. Havia verdadeiros enredos, com testemunhas histéricas e réus injustamente condenados, que eu escutava, fascinado e às escondidas, juntamente com a família amedrontada.

Mas faço o que posso: uma ou outra entrevista aqui e ali; actuações operáticas no Radio City Hall; e o hábito, desagradável para terceiros, de elaborar sistemas metafísicos enquanto caminho pela rua. A rua costuma parar, espantada; os mais velhos benzem-se e apressam o passo.

Um erro. Cientistas britânicos, em artigo para a "Early Childhood Research Quarterly", chegaram à conclusão que as crianças que falam sozinhas normalmente conseguem executar tarefas com maior proficiência. Esta espécie de treino mental, se exercitado ao longo do crescimento, pode também dar frutos na idade adulta, permitindo racionalizar problemas e verbalizar soluções de forma clara e ordenada.

Nada que eu não soubesse já. Digo mais: no dia em que arranjar secretária suficientemente ágil de dedos e liberal de cabeça, passarei a ditar as minhas crónicas diretamente da cama, como Churchill fazia com seus discursos.

Pensando bem, talvez a minha vizinha seja a pessoa certa para o trabalho.
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Estes foram trechos de uma crônica de João Pereira Coutinho para aFolha de São Paulo.
Vale a pena ler tudo!!!

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